Sobre testemunhos, fatos e ficções

Kaio Rabelo
3 min readSep 6, 2024

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Se a escrita das testemunhas “ensina” algo é que não ensinam coisa alguma, o que não quer dizer que seja impossível uma estetização das experiências traumáticas. Ao contrário, a própria escrita já se insere nesse movimento de colher e expressar um amontoado de sensações, percepções, sentimentos, expressões e significados incoesos, ou seja, ela sempre encerra algum nível de estetização. Em que medida isso é uma estratégia pra sobreviver ao trauma é uma questão que só se pode responder caso a caso. O ponto que coloca a estetização em dissonância com a experiência tem a ver mais com os silêncios que acaba produzindo.

Um lugar recorrente da escrita testemunhal, por exemplo, é o sentimento de culpa dos sobreviventes. Aqueles que retornam se sentem, em alguma medida, responsáveis pelos que ficaram, ou se sentem destinatários de um dom que não mereciam. Não raro, contudo, a narrativa da sobrevivência assume um tom triunfal, que destaca seja a força seja a engenhosidade daqueles que foram capazes de superar o horror imposto por seus algozes. A estetização só trai a experiência se tenta produzir uma solução pra esse conflito.

De um lado, os sobreviventes não cansam de rememorar situações miúdas, insignificantes, tornadas críticas pelo peso da situação, que bifurcaram seus destinos. Um dia qualquer, você demorou um pouco mais para chegar no pátio e ficou sem comida, ou acabou se ferindo no caminho dos sítios de trabalho forçado e a ferida infeccionou, ou sem querer encontrou os olhos de um kapo mal-humorado que entendeu isto como um desafio e decidiu te ensinar uma lição, são infinitas as possibilidades que, fora do controle de qualquer um, fizeram a diferença entre retornar e sucumbir. O que não quer dizer também, por outro lado, que os sobreviventes não lançassem mão de toda astúcia possível, que não lutassem até o fim de suas forças, que não cooperassem, em suma, que não tenham sido ativos na busca por esse milagre que foi o retorno.

A escrita testemunhal leva às últimas consequências, sem buscar qualquer unificação dialética, suas duas naturezas. Porque é uma escrita, coloca-se na torrente de um esforço expressivo que está a serviço da experiência, ela é uma escrita “sobre algo”; e não implica tanto uma adequação a esse algo quanto um “esculpir”, isto é, o que se diz vai sendo reformulado até que aquilo de que se diz aceite aparecer a partir do que foi dito. No entanto, por ser também um testemunho, ela tem um compromisso ético-existencial com a verdade factual. Não lhe basta dizer uma experiência, que, ao final, não faz sentido sem a perspectiva subjetiva do sobrevivente-narrador; ela persegue um fato, um “assim se passou”, que, sólido e incontornável, se reafirme como verdadeiro.

Como não precisa renunciar nem ao verdadeiro nem ao experiencial, o testemunho produz um efeito desconfortável. Parece que, tanto na busca pelo verdadeiro quanto no gozo estético, o que acaba em nossas mãos não simplifica nem esclarece o passado. Sabemos mais, imaginamos e sentimos mais, mas este objeto que emergiu e sobre o qual agora podemos falar por tanto tempo, tornou-se estranho e inóspito. É um objeto que, ao se subtrair àquilo que esperamos de uma substância (identidade e coerência), impondo-se, no mesmo golpe, como fato (ele é, não importa o que dele faça o sujeito), tornou-se mais real. Neste sentido, o que há de dissonante não é tanto a estetização quanto a expectativa de que se pudesse fruir, como efeito de uma narrativa testemunhal, uma unificação (ou simplificação) do passado.

Sem abrir mão de técnicas narrativas, sem deixar de mobilizar os tropos literários tradicionais, sem deixar de recorrer à linguagem poética e figurada para esculpir a expressão oportuna, a escrita testemunhal permite que os fatos se estabeleçam e maturem, que se fortaleçam, que, em suma, tornem-se reais. E por não demandar, necessariamente, um exercício de conciliação entre o que a testemunha experienciou (ao viver tanto quanto ao tentar dizer o que viveu) e o que de fato aconteceu, ela não tem que negligenciar o anteverso do fato, ou seja, a ficção. “O que deveria ou poderia ter acontecido” não aparece no testemunho, primordialmente, a serviço da pura imaginação ou da mentira, mas de uma situação experiencial: o lugar e momento que precedem a testemunha e a fazem ser aquilo que ela é. A narrativa de uma experiência será sempre, em algum ponto, uma tentativa de perseguir e atar os vários fios de sentido que se encontram esparsos na situação. A ficção, assim, não é irreal; ao contrário, ela é o real modalizado: sem ficção não pode haver fato.

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