Nota sobre os habitantes da narrativa: uma (possível) fenomenologia realista da narrativa histórica

Kaio Rabelo
7 min readJun 5, 2021

--

No centro do debate proposto pela filosofia pós-narrativista da história (Kuukkanen, 2015: p. 71), a distinção, cara a figuras tradicionais da chamada virada narrativa como Ankersmit e White, entre enunciados proposicionais simples e estruturas linguísticas de alto nível (como substâncias narrativas ou tropos) supõe alguma teoria da linguagem que chame atenção para o caráter constitutivo da “língua viva”. Quando desviamos o olhar da língua-estrutura para o acontecimento da fala e da escritura, o que encontramos não é um uso instrumental (língua enquanto veículo de pensamentos não-linguísticos), pois a língua possui um poder próprio de, por assim dizer, fazer devirem mundos, mesmo contra a vontade do falante e do escritor. A linguagem, criativa e figurante é opaca, refratária a qualquer submissão ao método. Assim que, no reino destas entidades novas com as quais as narrativas se envolvem, uma teoria da referência perde a capacidade de designar critérios partilháveis de verdade, obrigando-nos a recorrer a teorias da representação para compreendermos a relação entre a obra narrativa e aquilo no mundo de que ela se apresenta como representante. Parece-nos que a crítica de Kuukkanen ao denominado essencialismo narrativo (e seu holismo) não tanto recusa este ponto como o usa como motivador para situar a explicação historiográfica num nível menos exigente, o das teses e contra-teses sustentadas por práticas coletivas de argumentação racional, onde a autonomia e o poder das entidades narrativas de alto nível pode ser mitigado. No que se segue, faremos um incurso na ideia deste outro não-linguístico que tanto a referência quanto a representação almejam, propondo que a definição de uma narrativa ficcional a partir noção ontológica de irreal, se tomada como categoria explicativa, produz um ponto cego: a própria atividade de pôr em palavras, a experiência da expressão. Trata-se de uma fenomenologia realista (TENGELYI, 2007) que não tanto nega propostas como a de David Carr (2008), que mobilizam o ferramental descritivo para explicitar a proximidade (e talvez originariedade) entre mundo da vida e estruturas narrativas (histórias se vivem tanto quanto se contam), quanto busca situá-las numa trama conceitual em que a atividade narrativa pode ser pensada desde a atividade expressiva.

A ideia de um não linguístico é, por certo, controversa. Não se trata aqui de uma instância de decisão, à qual poderíamos submeter as contendas de narrativas competitivas sobre o passado, pois uma tal decisão só poderia ser comunicada com palavras. Contudo, o não linguístico possui algo de índice e fez assim algumas aparições na filosofia da linguagem. Kripke (1980), por exemplo, pensou o índice, como encontrado nas referências dêiticas e nos nomes próprios por meio de uma teoria da denominação rígida (e que muito estimulou discussões sobre um caráter causal da designação). Já o jovem Heidegger (1993), por sua vez, sob o título de “indicações formais”, esteve às voltas com a capacidade dos índices em apontarem para fora do sistema linguístico. Em ambos os casos, a despeito das incontáveis diferenças, o caráter situacional do falante revela um Outro do discurso, que está ali não apenas à revelia de suas intenções expressivas, mas potencialmente de qualquer uma. Este Outro recalcitra, consegue “por si mesmo” exceder as formas expressivas que lhe propomos. Kripke tem em vista a capacidade de certas descrições se tornarem necessárias, de modo a posteriori (empiricamente), a um objeto. A denominação rígida produz uma ancoragem da linguagem que, não obstante, não obriga a nada além da própria relação indexical entre o objeto e seu nome. A questão não é apenas se água é necessariamente H²O, mas também se isto é água; e se isto é água, então há uma continuidade real de objetos-indexados, fora da linguagem, que se experiencia a cada vez e que a linguagem não faz senão cotejar. Heidegger, por sua vez, procura cunhar categorias de voz média que sejam ao mesmo tempo vazias, posto que formais, e atraentes, já que devem instigar no interlocutor uma experiência própria, não um significado. Essa estranha conjugação entre forma e indexicalidade supunha que havia algo como uma estrutura partilhada (‘vida’, ‘existência’, ‘ser-aí’, etc.) que não se caracterizava nem por uma relação funcional entre suas partes nem pela completude de uma grade conceitual, mas antes pela necessidade de ser recuperada a cada vez.

A narrativa historiográfica possui um vir a ser, uma história, que não apenas tem que ver com suas formas emergentes, mas também com uma experiência de escrita onde um sistema diacrítico de linguagem é vivido desde dentro, em primeira pessoa. E esta vivência só pode ser assim construída, uma língua-estrutura em contínua discordância da língua-viva, porque aquilo que busca colocar em palavras possui uma outra carne, que só provisoriamente aceita um acordo expressivo. O não linguístico não é um mundo “lá fora”, que vai confirmar ou negar nossos juízos sobre o passado (experiência enquanto fundamento imediato de verdade). Talvez lhe façamos mais justiça o pensando como a presença do extemporâneo, que acomete os viventes do hoje como uma quebra de expectativas. É, como diz Tengelyi (2007, p. 240), a chegada de um futuro que nunca será presente a despertar um passado que nunca foi presente. Algo esteve aí como prenúncio e presságio, mas nunca habitou um sentido conformado. Sua chegada é precisamente a desorganização de qualquer horizonte temporal, é uma experiência “selvagem”, à caça de sua expressão. É pouco aqui indagar se a vida já possui ou não uma estrutura narrativa. Ou melhor dizendo, esse problema chega tarde. É porque a experiência traz consigo um processo de formação de sentido (Sinnbildung) que antecede a própria fala, que vivenciamos a constituição do sentido (Sinnstiftung) do modo como o vivenciamos: um jogo de perpétua estranhez entre a forma e o conteúdo da forma1, que me faz afirmar “isto não é bem o que eu queria dizer”.

White está correto, portanto, em apontar que “narrative becomes a problem only when we wish to give to real events the form of story. It is because real events do not offer themselves as stories that their narrativization is so difficult” (WHITE, 1980: p. 8, grifos do autor). Mas perguntemos: o que quer dizer exatamente um evento “real”? Se real é tão somente aquilo que foi o caso no passado, se é apenas algo que de fato aconteceu, então caberia perguntar ao facão metafísico, que recorta as entidades entre reais e irreais, de que natureza é este evento experienciante que acomete o historiador ao se envolver com o passado. Uma possível resposta seria dizer que o ponto é na verdade mais simples, delimitar dentre os eventos reais aqueles que interessam à narrativização, mas isto constrói mal o problema. O passado que interpela a narrativa historiográfica não está encerrado num “já sido” que pertencesse a outra dimensão, ele, antes, se mostra aqui e agora pelos documentos, ele é presente até por meio de suas ausências. Isto constitui o seu mistério, seu modo de temporalização, seu modo de real (pluralismo ontológico). Sua presença na forma de estilhaços e coleções é índice de uma forma orgânica, coesa e coerente, que foi o caso no passado. Que a narrativa se torne problemática ao pretender capturar esta forma passada em uma entidade linguística, vista sob o prisma da não coincidência entre experiência e expressão, não se deve a alguma característica específica das entidades reais que obrigaria a insuficiência da narrativa historiográfica frente à ficcional. A noção de que a forma narrativa é imposta a um conjunto mudo de atualidades do passado é uma solução muito apressada para a relação entre a narrativa e este outro não linguístico. Quando o historiador aponta para todas as operações de controle metódico com os quais ele amarra o tecido de sua narrativa, ele ou ela está também indicando uma população de entidades reais experienciadas durante o processo de emergência do texto, e que sobrevivem ao texto. População se define pela ocorrência conjunta, não por qualquer traço ontológico prévio. O historiador participa dessa ocorrência por meio de seus percursos de pesquisa, pois dela fazem parte desde as mais prosaicas das coisas (seus instrumentos de trabalho diários) até aquelas tornadas documentos (e que exigem relações corporais muito distintas segundo seu suporte), mas também, e provavelmente em número muito maior, entidades que ele desconhece e sobre os quais faz suposições. Mesmo a mais micro das histórias faz uma aposta sobre uma população de entidades reais e apresenta, sob a forma de texto, um acordo provisório (visto que a reelaboração expressiva não cessa) ao escrutínio do leitor.

A diferença da narrativa ficcional para a historiográfica poderia, desta forma, ser recuperada por meio da investigação dos percursos expressivos, a partir dos quais populações distintas negociam suas formações textuais. Brás Cubas não é, por princípio, nem mais nem menos real que D. Pedro II; que eles habitem composições diferentes é mesmo uma trivialidade, dado que só encontramos as entidades em suas relações. É só com estratégias concretas, é “na prática” que tais composições vão interpelar as entidades e dar caso para um devir ficcional ou não ficcional; o que vai ser discernível pela maleabilidade da composição, ou seja, pela força das relações entre as próprias entidades, que se estabelecem a posteriori, nunca antes. Tal ontologia aposta que as entidades linguísticas não habitam a consciência do falante, mas sim um mosaico de tramas perspectivas, onde uma experiência não linguística constantemente excede e se recupera em suas expressões: a narrativa aparece, portanto, como um espaço de coabitação entre a Linguagem e os seus Outros.

1“Die logischen Kategorien sind keine bildartigen Ausdrücke der Erfahrung, sie sind vielmehr Formen einer Sinnstiftung, die einen sich fortbildenden Sinn festzusetzen sucht, ohne ihn jedoch je restlos ausschöpfen zu können” (Tengelyi, p. 195).

Referências:

CARR, David. “Narrative Explanation and Its Malcontents”. In History and Theory, Vol. 47, №1 (Feb., 2008), pp. 19–30.

KRIPKE, Saul. Naming and Necessity. Harvard University Press, Cambridge, Massachusetts: 1980.

Kuukkanen, Jouni-Matti, Postnarrativist Philosophy of Historiography. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2015.

HEIDEGGER, Martin. Phänomenologie der Anschauung und des Ausdrucks: Theorie der Philosophischen Begriffsbildung. Vittorio Kloestermann GmbH, Frankfurt am Main: 1993.

TENGELYI, László. Erfahrung und Ausdruck: Phänomenologie im Umbruch bei Husserl und seinen Nachfolgern. Springer, Dordrecht: 2007.

WHITE, Hayden. “The Value of Narrativity in the Representation of Reality”. In: Source: Critical Inquiry, Vol. 7, №1, On Narrative (Autumn, 1980), pp. 5–27.

--

--

No responses yet